terça-feira, dezembro 19, 2006

Quatro solitários e um casal de aposentados


Nos últimos dias tenho descoberto um prazer, do qual já tinha ouvido falar, mas por falta de oportunidade ou coragem, nunca havia feito. Ir ao cinema sozinha: há algo de muito libertário nisso. Pode até virar vício.
Eu, na minha falta de saber o que fazer da vida e tentando não seguir caminhos que eu sei que não são meus, ando agora por aí, olhando a cidade, as vitrines, as pessoas. É estranho andar sozinha, mas às vezes acho a solidão muito tranqüilizante. Os sons externos se calam e a voz interior atinge um timbre mais agradável, e por isso, é mais ouvida.
Voltando ao cinema. Era o último dia de um filme que queria muito ver. Cheguei um pouco antes, e fiquei sentada num banquinho, segurando uma torta alemã companheira, esperando o momento de poder entrar na sala. Quando entrei, quase derrubando a bendita torta, percebi a sala completamente vazia. Parei, dei aquela olhada panorâmica, e logo fui ultrapassada por um cara. O tal cara se sentou ao fundo, e eu fiz alguma piadinha (minha voz quase ecoava pelo lugar). Ele nem respondeu. Cara sério... Sentei-me umas três fileiras à sua frente, no meio, e uma sensação de pânico neurótico sem noção me invadiu. E se eu fosse assassinada numa sala de cinema vazia?
Ainda bem que logo depois entrou mais uma mulher, também séria, mas segurando um pacotão de pipoca. Sentou-se no canto esquerdo, um pouco abaixo de mim. Depois, incomodada, passou para o canto direito. Quando olhei de novo, havia sumido. Mais alguns segundos e entrou mais uma mulher, um pouco mais normal. Olhei para trás e vi que ela se sentou na mesma fileira do cara psicopata, à sua esquerda. Então percebi que a primeira mulher, que tinha evaporado, estava também na mesma fileira de cadeiras, mas à direita do cara. Claro que guardaram as devidas distâncias:

O ; ; ; ; ; ; ; ; ; ; ; ; ; ;O ; ; ; ; ; ; ; ; ; ; ; ; ; ; O

Logo depois entrou uma casal de sessentões, desses aposentados que adoram dialogar e preencher suas horas . Sentaram-se no outro grupo de cadeiras, do lado direito, isolados de nós. Na verdade eu também estava isolada, visto que os outros três solitários estavam de certa forma unidos, na mesma fileira. Só sei que à minha frente, no meu ângulo de visão, não havia uma alma viva. Isto era ótimo (nenhum cabeção ia tampar minha vista), e ao mesmo tempo muito estranho, ainda mais quando as luzes se apagaram. (tenho medo de escuro).
O filme então começou. Muito muito bom mesmo. “Eu, você e todos nós” (Me, you, and everyone we know) de Miranda July. E o fato de estar sozinha fez com que eu me envolvesse mais. Fala da cultura digital, não de um jeito escancarado, com milhares de traquitanas tecnológicas e urbanidades, mas de uma forma sensível e humana. Com certeza vai para a minha lista de preferidos.
Pânico de novo. Eu sabia que não havia ninguém à minha frente e ao meu lado. Estava vendo que não havia. No entanto, comecei a ouvir um barulho vindo da minha frente e do meu lado, no chão. Olhava, olhava, e nada. Parecia o barulho de caixas sendo desembrulhadas. Pensei que estava havendo um curto-circuito nas pequenas lâmpadas no chão ou algo parecido, ou então eram bichos. Ave! Será que os outros também estavam ouvindo?
Foi aí que percebi que o barulho era de água. Água caindo. Como está chovendo todos os dias em Goiânia, foi fácil presumir: estava chovendo no cinema. Só então consegui enxergar a água caindo do teto, a umas 5 cadeiras de distância, à minha direita. Atrapalhou um pouco a concentração no filme, mas ir a um cinema não popular, em plena tarde de quinta-feira, tem seus riscos. No fim, foi até engraçado.
Quando acabou, fiquei enrolando, recolhendo minhas coisas que deixei espalhadas nas cadeiras ao meu lado. Sozinha por mais uns instantes, dando meus últimos suspiros. Depois me levantei e fui embora, antes que fosse expulsa por um cara que esperava para fechar a sala.