sábado, março 15, 2008

Miro


Miro está exposto ao sol. Um sol que já não sabe se vai ou se fica. Lembra-se de como quisera ser super-herói. Ter superpoderes e voar e salvar os fracos e oprimidos. Sua mãe fez-lhe uma roupa do zorro para que fosse a uma festa. Mas ele ficou com vergonha. Todos os seus amigos estavam vestidos de robôs. Colocou um balde na cabeça e resolveu o problema.
Miro pensa que podia fazer mais. Que podia ter uma existência mais relevante para o universo inteiro, e não apenas para os que o rodeiam. Ser amado pelos amigos e ajudar uma velhinha a atravessar a vida uma vez na rua outra na morte não parecia fazer tanto sentido. Devia mais. Talvez esse pensamento fosse algo tão ou mais impossível que uma utopia. Mesmo assim, o sol, mesmo já bem fraco, parece dizer-lhe que ele poderia ter feito mais.
Seu dente dói. Esqueceu o horário no dentista. E nem avisou. Nesse momento fazer o dentista perder tempo traz uma culpa tão tamanha como se no fundo no fundo fosse culpado por todos os problemas do mundo. E é. E o dente dói mais ainda por isso. E para se redimir, deixa o dente doer. Pagar com dores nos dentes por todos os seus pecados. Moeda duvidosa. Talvez o chicotinho fosse mais eficiente. Miro não está morrendo. Pode fazer muita coisa ainda. Mas, por preguiça, prefere esperar o fim do mundo. E ele tem certeza de que o mundo vai acabar antes de sua morte. E que Ele não volta não. E não tem separação de almas também não. É tudo balela. Na verdade, vira tudo poeira cósmica de novo. (Que contradição! Pra quê tanta dor de dente então?) Pula na piscina que sua cabeça está queimando exposta ao sol fraco das seis e não há balde nenhum por perto dessa vez.

segunda-feira, março 03, 2008

Personalidades de salas de espera

Sêu Leopoldo dorme 2 horas por dia. Diz que odeia dormir. É perda de tempo. “É uma questão de treinamento”, ele diz. Você começa diminuindo 1 hora de sono por semana, e quando se dá conta, percebe que a necessidade de dormir é coisa que colocaram na sua cabeça.
Sêu Leopoldo tem mais de 70 anos e é um dos caras mais cultos que eu conheci nos últimos tempos. Em salas de espera, pega as revistas para ler e quando não consegue memorizar as reportagens naqueles minutos, pede para emprestarem. “Tenho as minhas técnicas de memorização.” Se ler alguma coisa e deixar que as informações se percam, é como se não tivesse lido. Na verdade é o que acontece com todo mundo. Mas Sêu Leopoldo não se contenta com leitura inútil. Não que ele selecione muito o que vai ler. Pra ele, tudo é cultura. Por exemplo: toda vez que o convidam para ir a uma igreja evangélica, ele vai. Para observar. Mas não peça para ele concordar com tudo o que ouve. Sêu Leopoldo já leu sobre praticamente todas as religiões, sabe técnicas de respiração, meditação, receitas naturais para melhorar a saúde. E se você falar sobre algo de que ele nunca tenha ouvido falar, na próxima semana, pode ter certeza: ele já saberá muito sobre o assunto.
Sêu Leopoldo gosta de processos investigatórios. Já fez cursos sobre investigação policial. E diz que tem em casa uma máquina da verdade. Segundo ele, a máquina mede a veracidade dos depoimentos pelo suor das pessoas. Diz que funciona mesmo. Mas como não é de muita serventia para ele, vai doar para uma delegacia.
Essa é a coisa mais importante da vida de Sêu Leopoldo: Adquirir conhecimento. Saber. Ler o mundo à sua volta. E olha que ele não tem curso superior, mas é mais inteligente do que a maioria dos que o tem.

E se eu continuar conhecendo pessoas interessantes como Sêu Leopoldo todos os meses, já terei uma boa parte da riqueza que quero pra minha vida.

sábado, março 01, 2008

Pra você

Tenho algo a dizer pra você, você sabe quem. Você que pode ser qualquer um, e pode ser ninguém. Você já aprendeu um pouco sobre mim, sabe que sou um pouco complicada e esquisita, mas sou de fácil convívio. Sei que ser de fácil convívio não é lá algo muito interessante, mas é bom que você saiba disso agora. Porque eu falo umas verdadezinhas de vez em quando e minha franqueza me impede de ser educadinha o tempo todo, mas ela serve pra que nada fique entalado na garganta obstruindo a alma. Precisa saber que freqüentemente tenho uma cara de não, mas se tiver tempo disponível e olhar com muita delicadeza, vai ver outras três letrinhas piscando nas minhas pupilas dilatadas. Precisa entender que tem que ter paciência com meus distanciamentos e com a minha dificuldade em andar de mãos dadas. Isso tudo é só pra disfarçar e não dar na telha que fico te olhando quando você não tá olhando. Tem que entender também que não pode nunca ser rude comigo, porque isso pode ganhar proporções gigantescas e posso te confundir com um psicopata. Porque sou meio neurótica e sempre encano de achar que fulano é psicopata ou gay.
Eu só preciso que você goste de velhinhos e de crianças, seja espiritualizado, generoso e faça boas ações todos os dias. Que goste de filosofar um pouquinho e tenha uma cara de tristinho de vez em quando, de quem pensa sobre o sentido da vida, mas que tenha uma alegria contagiante e uns olhos brilhantes na maior parte do tempo. Além de ser sensível, não se esqueça de ser bem seguro. Eu gosto de me sentir protegida.
Tudo bem. Eu confesso que não é só isso. Ou que não é tudo isso. É muito mais simples, e muito mais complexo. É abstrato. Talvez uma questão de energia, campo áurico, ou sei lá.
É preciso que cause em mim um sentimento inexplicável, que, eu tenho certeza, poucos nessa vida chegam a sentir de verdade. E mesmo que alguém diga que isso é romantismo, eu posso te garantir que é a mais pura racionalidade, a mais clara lucidez. É preciso que seu sorriso me comova, que seu olhar me emocione. Quero que você vibre com a vida e me faça vibrar com ela também. Que você brilhe em cada palavra dita, em cada suspiro, em cada aceno de mão. Que seja uma pessoa melhor do que eu, mas que também queira aprender um pouco comigo. Que deseje um crescimento contínuo ao meu lado.
Ainda que eu não veja necessidade em andar na moda, não dá pra tentar, como muita gente faz, inventar combinações sem pé nem cabeça e ir empurrando com a barriga pra ver no que dá. O tempo faz com as cores fiquem mais destoantes ainda.
Mas o que eu preciso mesmo te pedir é que não desista de mim quando eu fugir de você, pois assim você corre o risco de perceber que mesmo me escondendo tanto, eu posso ser intensamente presente.